sábado, 13 de abril de 2013

Uma análise de "A arca", de Vinicius de Morais



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Ana Klauckpor Ana Klauck -

Leão! Leão! Leão!
Rugindo como o trovão!
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montês.
(MORAES, Vinicius. A Arca de Noé. São Paulo: Cia das Letrinhas, 2004).
Calvino nos trouxe uma reflexão brilhante quando afirmou que clássicos são aqueles livros que estamos sempre relendo. São obras de que já ouvimos falar, que já foram recomendadas e sugeridas, cujas críticas e comentários já examinamos e, às vezes, são obras que realmente já lemos e que, por terem nos marcado, nos colocam em dívida com a releitura. Calvino nos lembra (pois realmente tenho a impressão de que essa ideia esteve sempre aí, eu é que não a havia pegado em minhas mãos ainda) que clássico é um livro que nunca terminou de falar com a gente, que está sempre nos dizendo algo. São obras indeléveis, que atravessam a história e a geografia e continuam a reverberar gerações, mesmo as mais distantes da época e do local em que a pena tocou o papel. Eu me atrevo a dizer que são obras que, de tão lidas e relidas, ou ainda, de tão comentadas e mencionadas e encenadas ou reproduzidas, beiram o imaginário popular, na medida em que se misturam com a cultura apócrifa (não escrita): produzida e repetida na oralidade.


A literatura infantil em geral é um gênero jovem, que ascendeu no Brasil a partir do início do século XX. Ainda assim, ela conta com grandes nomes, que se consolidaram ao longo dos anos e que viraram sinônimo de qualidade literária no gênero. Muitos desses clássicos da literatura infantil estão enraizados na cultura brasileira e se popularizaram entre adultos e crianças de tal forma que sobrevivem em referências quase que folclóricas, em uma existência lendária, que se miscigena com a cultura popular e que foge, muitas vezes, dos grilhões da autoria. São obras que, caso tivessem sido escritas em outros tempos, em uma era não tão preocupada com a autoria e com o copyright, acredito que seriam elevadas à categoria “folclore”, tamanha sua ubiquidade. Caso não tivessem sido escritas na época do papel, tenho certeza de que ainda estariam por aí, na boca das pessoas, sendo recitadas e repetidas. Mas, diferentemente disso, esses clássicos nasceram, sim, na época da autoria e, ainda assim, continuam a ser carregados nos braços do povo, nas bocas e no imaginário cultural do Brasil. Lembro que, quando eu era criança, minha mãe volta e meia ensinava cantigas e parlendas para minha irmã e eu. Na escola, a cultura popular também era reforçada, e, com frequência, saíamos de lá com um repertório extenso de novas composições. Eram versos e brincadeiras produzidas e repetidas por um sem número de anos, despreocupados com a autoria e que sobreviviam na oralidade. Foi nessa época que aprendi uma “música” que muito me intrigou. Falava de uma casa, que não tinha paredes, nem teto, nem chão, nem nada. Repeti essa música por muitos anos, e meus amigos e colegas também. E foi com surpresa que descobri, já mais velha, que a “música”, ao contrário do que eu pensava, tinha autoria. E “pertencia” a um livro e não era simplesmente uma invenção do povo, assim como a maioria das canções que eu aprendi quando muito pequena. Surpreendeu-me saber que a música era, na verdade, um poema, que tinha “dono”, e que (nessa hora quase não acreditei), era de Vinicius de Moraes: um poeta conhecido, que eu inclusive já tinha estudado na escola.A casa   Era uma casa muito engraçada Não tinha teto, não tinha nada Ninguém podia entrar nela, não Porque na casa não tinha chão Ninguém podia dormir na rede Porque na casa não tinha parede Ninguém podia fazer pipi Porque penico não tinha ali Mas era feita com muito esmero Na rua dos bobos, número zero. (MORAES, 2004).Outro fenômeno de Vinicius de Moraes é “O pato”, poema que, também em forma de música, povoou minhas brincadeiras de criança. Esse texto me interessava tanto que eu memorizei seus versos e desafiava a mim mesma a tentar recitá-los o mais rápido que eu pudesse. Meus colegas ficavam impressionados… Pois não era nada fácil. Também fiquei surpresa quando descobri que o meu querido “Pato” também era filho de um pai e, mais ainda, quando descobri que era irmão d“A Casa”. Demorou algum tempo: eu já era adolescente e tinha deixado de lado os poemas por certo período quando me dei conta de que uma grande parte das “músicas” que me encantavam quando pequena era toda de um mesmo autor e, mais do que isso, de uma mesma obra. “A casa”, “O pato: Vinicius de Moraes. “A porta”, “O relógio”, também dele. Não podia ser!O pato   Lá vem o pato Pata aqui, pata acolá Lá vem o pato Para ver o que é que há…   O pato pateta Pintou o caneco Surrou a galinha Bateu no marreco Pulou do poleiro No pé do cavalo Levou um coice Criou um galo… Comeu um pedaço De genipapo Ficou engasgado Com dor no papo Caiu no poço Quebrou a tigela Tantas fez o moço Que foi prá panela… (MORAES, 2004).Essa descoberta tardia vem de um tempo em que a preocupação com a autoria não era tão grande como é hoje. Quando me ensinaram os versos de Vinicius, não havia porque me explicarem que se tratava de um poema com autor, e não de uma cantiga popular. Hoje em dia, de maneira muito diferente, o mundo é movido a créditos, em um loop de copyright eterno. Seria impensável na nossa contemporaneidade vincular uma obra sem prestar os devidos créditos a seu criador. Tal atitude seria, mais do que ingênua, passível de um processo judicial dos mais sérios.

De qualquer forma, acho que o que me deixou mais surpresa naquela época foi saber que, ao contrário do que eu acreditava, aqueles versos não eram parlendas, folclore, cantigas populares. A forma como eles me foram ensinados, de forma tão natural, sempre me fez crer que faziam parte do mesmo grupo do “Sapo” (aquele que não lava o pé) ou da “Ciranda-cirandinha”. A maneira como todos nós, crianças ou adultos, repetíamos os versos, memorizados instantaneamente, e como nos regozijávamos ao ouvi-los e ao reproduzi-los não me deixavam dúvidas de que eram folclóricos. A forma como “O pato” e “A casa” poderiam ser ecoados por qualquer pessoa, bastava alguém instigar recitando a primeiro linha, mostrava que eram parte do imaginário popular, que não necessitavam de papel, nem de livros, muito menos de autores. Mas, ao contrário do que eu pensava, o que eu tinha nas mãos era, sim, uma obra literária, um texto escrito e reproduzido em livros, antes de estar na boca das pessoas. Aos poucos, fiquei curiosa em saber mais sobre essa obra e sobre o que a tornava tão especial a ponto de me fazer confundi-la com algo tão grande quando a cultura oral.
“A arca de Noé”, de Vinicius de Moraes é essa obra incrível, composta por vários poemas que reverberam há anos por todo o Brasil. O livro foi lançado na década de setenta e, logo em seguida, foi todo musicado por Vinicius e Toquinho, de cuja parceria surgiu um álbum homônimo, também de muito sucesso na época. Juntos, o livro e o disco (além de um musical na televisão) alcançaram proporções inimagináveis em se tratando de produções destinadas ao público infantil e, até hoje, quarenta anos depois, ainda estão entre os mais vendidos e mais reproduzidos no país. Não há dúvidas de que “A arca de Noé” é um fenômeno da literatura brasileira e, mais do que isso, um clássico do gênero.
Não consigo pensar em nenhuma obra da literatura infantil brasileira, talvez, apenas “O sítio do Pica-pau amarelo, que possa ser tão bem denominada clássico, pensando nas definições de Calvino. “A arca de Noé” é uma obra com a qual a maioria das pessoas, principalmente as crianças, entra em contato primeiro pela oralidade e cujos versos ficam na memória até mesmo de quem nada sabe sobre o poeta ou sobre o livro. Os versos de Vinicius estão na boca do povo não somente pelo sucesso de vendagem do texto e do disco, mas sim, pela contaminação folclórica que seus versos promovem, em uma transmissão oral e constante. São adultos e crianças reproduzindo poemas cuja autoria ignoram, cuja origem, muitas vezes, desconhecem. Ao mesmo tempo, quem tem o livro pela primeira vez em mãos tem a sensação de releitura, já que os escritos não lhe parecem inéditos. Esse é um dos sentimentos que “A arca de Noé” provoca: dejavu. É a sensação de encantamento, da familiaridade, de emoção em perceber que aquelas palavras existem sim, também escritas, e que alguém foi o responsável por trazê-las à vida. A leitura de Vinicius, assim, é uma constante releitura, é um voltar a uma infância que não se perdeu, é um recontar a vida com versos que nunca foram esquecidos.
E o que faz a obra de Vinicius tão importante? O que a torna tão impregnada de poesia, de vida, de infância que a enraíza na nossa memória de forma que nem entendemos? “A arca de Noé” é uma obra que não é nova e nem velha e, sim, atemporal, pois nos causa a sensação de sempre ter existido. Como explicar esse sentimento de revisitação da infância causada pela poesia de Vinicius? E como compreender o efeito de seus versos no resgate constante de um folclore nunca mencionado? O que tornam sua métrica, sua temática e sua construção fônica tão especiais a ponto de as visitarmos de forma natural e apócrifa, da mesma forma como fazemos com parlendas e cantigas de roda folclóricas?
Não há como medir a força da poesia infantil de Vinicius de Moraes, e seus efeitos são de tal forma permanentes, que não acredito que seus versos serão algum dia esquecidos. Simplesmente porque “A arca de Noé” ainda não se esgotou, ainda não terminou sua conversa com o leitor e continua encantando e cativando mesmo quem não conhece sua versão escrita. Os poemas do livro são sinônimos de infância e de brincadeira e captam o leitor em minúcias incompreensíveis. A poesia de “A arca de Noé” não tem explicação: é um fenômeno cultural do Brasil. Mas, mais do que um clássico da literatura infantil, a obra de Vinicius é um deleite para a infância, uma exaltação da arte da palavra e daquilo que há de lúdico nela. É a poesia do inédito da vida, daquilo que se viu, mas não se viu. É brincadeira pura, simplesmente porque a vida precisa dela. Ler “A arca de Noé” é viver a infância em qualquer idade, é a vida visitando a singeleza, o leve, aquilo que é belo e simples. Ler “A arca de Noé” é nunca ler: é sempre reler e revisitar, é suspirar de novo uma infância permanente, é andar de novo com passos lentos para apreciar o mundo.
MORAES, Vinicius. A arca de Noé. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004.


Ana Klauck – Professora da área de Letras / Doutoranda em Letras PUCRS
Porto Alegre-RS

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